segunda-feira, 16 de maio de 2011

texto de Bruno Moreschi para (depois de) antes da queda


Em lugar nenhum
por Bruno Moreschi (*)
Em 1981, aos 22 anos, após o término de um namoro, a fotógrafa norte-americana Francesca Woodman jogou-se da janela de seu apartamento. Como legado, deixou mais de 100 fotografias, a maioria até então ignorada pelos galeristas de Nova York.
Uma dessas imagens é certamente um dos mais fantásticos autoretratos já produzidos por um artista. Aos trezes anos, Francesca abusou da longa exposição da câmera e clicou a si mesma. Sentada num banco, vestia um suéter de lã com detalhes em autorelevo e segurava um pedaço de madeira, o responsável por acionar o clique da máquina. O registro foi de seu rosto inteiramente tampado por longos fios de cabelo.
Pouco anos antes de sua morte, Francesca escutou de um crítico de arte algo sobre essa imagem que lhe agradou muito. O de que esse autoretrato que se nega em expor o rosto da fotografada seja uma síntese interessante da posição dúbia que a mulher ocupa no mundo contemporâneo.
Por alguma razão, que assumo não ser capacitado em precisar, a luta por direitos e deveres iguais entre homens e mulheres desvirtuou-se para uma busca perversa entre a igualdade dos gêneros. Como se feminino fosse masculino.
Por medo de serem taxados de misóginos, poucos se atrevem a questionar essa absurda simplificação. O diretor de cinema dinamarquês Lars von Trier mostrou em seu terror Anticristo as forças telúricas que atuam sobre a mulher. E recebeu severas críticas, em grande parte curiosamente vindas da platéia feminina.
(depois de) Antes da queda possui uma coragem semelhante – com o mérito de não ter apelado para o misticismo juvenil de bruxas e lobos falantes utilizados por von Trier em sua película. A diretora e coreógrafa Juliana Moraes preferiu movimentos mais sutis e, certamente, mais complexos. Nos cenários e nos movimentos das criadoras-intérpretes Carolina Callegaro, Isabel Monteiro, Érica Tessarolo, Beatriz Sano e Flávia Scheye, estão as cadeiras, as mãos retorcidas e os fios de cabelo emaranhados tão presentes nas fotografias de Francesca Woodman.
"Trabalhamos uma dramaturgia que se constrói por repetições de imagens que vão se diferenciando de si mesmas a cada nova vez que reaparecem, através de distorções, deslocamentos e condensações. Buscamos a repetição na diferença e isso vai dando forma temporal e espacial ao trabalho. No momento, chamo isso de 'dramaturgia do inconsciente'", diz Juliana.
Ela completa que "no início, aprendemos uma a uma todas as formas do corpo da Francesca. Depois desse começo árduo, quando as poses demoravam pra chegar do cérebro para o corpo, elas acabaram por se tornar nossa segunda natureza e pudemos manipulá-las livremente, juntando duas ou três numa mesma ação e imaginando desdobramentos para além das imagens sugeridas pela artista."
A música composta por Jonas Tatit utiliza os barulhos de talheres, de móveis se arrastando e de portas se abrindo numa alusão ao apartamento quase vazio em que a fotógrafa costumava trabalhar. A fotógrafa Cris Lyra registrou os ensaios numa série de imagens branco e preto, enquanto o iluminador André Boll usa como inspiração pinturas surrealistas e renascentistas para criar a luz colorida do espetáculo, dialogando com os elegantes figurinos de Paulo Babboni. A produção é coordenada por Stella Marini. A artista plástica Marcia de Moraes assistiu a alguns ensaios do espetáculo e produziu um conjunto de desenhos de poucos e leves traços que ilustram esse material de divulgação. Como na peça, a sugestão prevalece.
O título do espetáculo é uma referência assumida dos segundos que antecederam a queda de Adão e Eva, quando essa última mordeu a maçã proibida do paraíso – e, é claro, ao instante antes de Francesca se jogar da janela. O antes de qualquer salto é um confuso instante. Não se está no chão. Nem livre no ar. Uma desordem entre a racionalidade de permanecer na segurança do plano e a instintividade de se deixar levar pela gravidade.
(*) Bruno Moreschi é jornalista especializado em artes plásticas.

Convite (depois de) antes da queda