quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Rapunzel, de Flavia Bertinato no Sesc Santo Amaro

SESC SANTO AMARO apresenta
Rapunzel, individual de Flavia Bertinato
 Visitação até 12 de fevereiro de 2017

Rapunzel é formada por seis carretéis localizados em diferentes regiões da galeria do SESC Santo Amaro, com tesouras douradas espetadas em suas tranças realizadas manualmente, a partir de fibras de sisal (material de origem da cidade de Valente, Bahia). As tranças, com dimensões entre 50 cm e 120 cm, ainda foram amarradas, uma a uma, para a constituição de grandes extensões no preenchimento dos carretéis e nas formações das tramas que se expandem entre um carretel e o outro, e também até o grid do teto. As tesouras que perfuram as entranhas das tranças dos carretéis têm três dimensões, variando entre 30 e 9 cm. Em práticas cirúrgicas, elas têm diferentes funcionalidades como o acesso a órgãos e retirada de pontos, dado às suas dimensões e formatos. Em Rapunzel, a localização de tesouras é um recurso de diferenciação de características entre os carretéis, mas também carrega esta informação simbólica de perfuração do interior e superfície corporal. Para cada configuração de Rapunzel em suas montagens recentes (Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro, Celma Albuquerque Galeria de Arte e Museu de Arte de Ribeirão Preto Pedro Manuel-Gismondi), a artista adotou possibilidades distintas de configuração da obra no espaço. No caso do SESC Santo Amaro, por exemplo, Rapunzel articula-se diretamente com a estrutura do teto, onde tranças são amarradas a uma altura de cerca de 4 metros, criando pontos de apoio das próprias tranças de sisal.

Vale também dizer que a galeria do SESC Santo Amaro tem paredes de vidro, atribuindo à instalação informações externa, como os próprios frequentadores transeuntes em corredores, escadas e espaço de banho de sol, a arquitetura e obras do acervo da instituição, para além de um pequeno recorte da cidade, com suas fiações elétricas e área verde. Ao ver a instalação Rapunzel no SESC Santo Amaro, portanto, o visitante também pode deparar-se com estes outros elementos que estão às vistas e, que de certa forma, estão incorporados à obra. 

Rapunzel instaura uma espacialidade, que cunha novas possibilidades de trajetos do público com o local. Ao passo que, também, interdita o acesso ao próprio interior da obra. Tal ambiguidade resulta do emprego de formas, que convocam ao manuseio, como o formato das tesouras que indicam a possibilidade de fácil encaixe de dedos, a manivela dos carretéis que indicam o movimento rotativo e, também, as rodas nos carreteis que atribuem uma memória de deslocamento das peças. Contudo, o público é interditado, sendo estimulado à elaboração mental para a realização destes exercícios. A ambiguidade não se restringe exclusivamente ao apelo sensorial que confisca a realização de movimentos do espectador. 

Rapunzel menciona em seu título e no uso de tranças, o conto popular que teve importante projeção na versão dos Irmãos Grimm (Jacob Grimm e Wilhelm Grimm) no século XIX. Diferentemente do conto literário, a instalação Rapunzel atribui maior atenção ao momento clímax e de violência do conto, e não ao desdobramento da relação amorosa da protagonista com o príncipe. A instalação reportar-se ao corte das tranças de Rapunzel, que na literatura é praticamente um crime realizado contra a felicidade de uma mulher. 
Como amplamente conhecido, o corte das tranças é momento de maior sofrimento e sentimentos de tristeza de Rapunzel. Pois estando aprisionada no alto de uma torre, a extensão de suas tranças era o meio para manter encontros com o príncipe. 

A consumação do relacionamento entre Rapunzel e um homem teria um forte significado libertador na literatura. Na instalação, estas informações arma de crime, protagonista, violência e encantamento são todos embaralhados, colocando-nos também à reflexão paradigmas morais e fatos recentes ocorridos de agressão contra a mulher. Só para constar, durante a produção e as exposições da obra Rapunzel em 2016, mesmo ano que completam 10 anos de promulgação da lei Maria da Penha com atenção focada a violência de gênero foi sancionada no Brasil, o país apresenta um quadro de aumento crescente de crimes contra a mulher.

Outras obras da artista também lidam alegoricamente com noções de suspense, de potência de uma dada ação e crime. Questões tão diluídas no convívio social como as relações amorosas e a clandestinidade são de interesse pela artista que, a partir desta abordagem temática, reflete sobre própria a condição de “público” e de “testemunha”.

​A instalação “Bandida”, 2013 -2014 é uma alegoria do personagem do filme “O Bandido da Luz Vermelho” do diretor brasileiro Rogério Sganzerla, apresentada na Galeria Marília Razuk, São Paulo e Museu de Arte da Pampulha, Belo Horizonte. Em “Bandida”, uma carroceria, esparrama cerca de meia tonelada de glitter. A carroceria estabelece relações com diversas lanternas, que potencializam a cor dourada do falso ouro, e também com os cabos utilizados nas recargas das lanternas. A inclinação da carroceria somada ao exercício do vermelho do pisca-alerta intermitente sugere o acontecimento de um acidente recente.

“Boa Noite, Cinderela” 2008-2010, uma série de fotografias apresentada na Galeria Virgílio em 2010, São Paulo, apropria do nome de um golpe associado à cena noturna, intimidade entre desconhecidos, fragilidade e exposição de corpos de vítimas. Ao sujeito que observa a fotografia lhe é proposto uma situação esquisita de voyeur ao deparar com corpos imersos na representação de algum sono.

Rapunzel, SESC Santo Amaro:
De 12 de novembro de 2016 a 12 de fevereiro de 2017
De terças as sextas das 11h às 21h.
Sábados, domingos e Feriados, das 10h às 18h.
Entrada gratuita

Assessoria de imprensa: Solange Viana | solange.viana@uol.com.br | tel. 4777.0234
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TEXTO APRESENTAÇÃO POR TAISA PALHARES
No conto popular compilado pelos irmãos Grimm, Rapunzel é a menina cujo destino é definido pelo poder mágico de seus longos cabelos loiros. Eles são ao mesmo tempo a causa de sua maldição e o acesso a sua liberdade. No fundo, as tranças se tornam as protagonistas da história, frequentemente representadas como se tivessem vida própria em ilustrações antigas. E como em todo conto de fadas, a beleza está associada à magia: ambas são sedutoras e encantatórias, mas também levam à cegueira (literal nesse caso) ou a algum ato violento, antes que tudo finalmente termine bem.

Na instalação de Flávia Bertinato intitulada Rapunzel, sete carretéis de tamanhos diferentes enrolam longas e finas tranças de sisal, traspassadas por tesouras cirúrgicas douradas. O momento evocado é aquele posterior à ação violenta que acabou momentaneamente com o encanto da personagem principal.

Como em outros trabalhos da artista, Rapunzel apresenta o tempo em suspensão, o corte de uma sequência narrativa que se revela como instante de alta tensão. O emaranhado de tranças pode se regenerar e tomar o espaço em trama infinita, bem como permanecer imóvel, sem vida.

Bertinato acessa o imaginário popular para nos colocar diante do senso comum em relação às ideias de amor, sedução e feminilidade, naturalmente com ironia e ambiguidade. Pois, se por um lado a atração pela beleza é reiterada, por outro, o elemento disruptivo que é seu duplo também está presente. Em certo sentido, isso corresponde à própria relação que estabelecemos com a arte. Seus objetos são feitos para seduzir e nos seduzem, mas essa atração não é apenas engano. Ela também pode ser a passagem para o avesso, o outro lado.