Leia texto de Renata Wilner, crítica de arte de Pernambuco.
Texto para a Exposição ESCALAVRO E ENTORNO de Rosângela Dorazio
O EMBATE POÉTICO ENTRE IMAGEM E MATÉRIA
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Augusto
dos Anjos
Rosângela Dorazio apresenta, nesta exposição, as séries “Do Verbo Amar”
e “Escalavrados”. Nelas, a artista mostra um mesmo princípio em modos
diferentes e em determinados aspectos, opostos. Trata-se da ênfase sobre a
ação: escalavra o suporte material da imagem, ou entorna suavemente café sobre
aguadas de nanquim. Introduz um ponto de interferência sobre o que já se
constituía como imagem gráfica ou fotográfica, que se desfaz e refaz qual novo
paradigma de si. Apresenta-se como outra, que já não é mais a imagem construída
sobre códigos confortáveis, mas sua negatividade ou avesso.
Assim, Rosângela Dorazio desestabiliza paisagens interiores e
exteriores, sujeitas a interferências acidentais ou nem tanto... Pois o gesto
tem início na intenção.
O café das memórias olfativas, afetivas, servido na cama ou na mesa para
um, dois ou três, derramado e sujo, respingado de carícias e mágoas. Convívio
diário, intimidade, solidão, relação a dois, triângulos amorosos, encontros,
desencontros e toda sorte de arranjos dinâmicos e jogos do devir dos
relacionamentos. Os excessos extravasados, escorridos, recolhidos e as manchas
deixadas. O previamente traçado em figuras familiares, marcado pela
interferência imprevisível de um gesto repentino. O desenho das relações altera-se
diante do inesperado. O aguado e o entornado encontram-se sobre uma superfície,
sobreposições de um cotidiano complexo.
Entre o céu e a terra, um hiato que vai se abrindo. O mundo das coisas
que se desfaz, escalavrado. Já não é a suavidade líquida do café escorrido (mas
que queima e mancha); agora o gesto se torna incisivo. Goiva que fere e revela
a carne branca sob a pele da imagem. Memória da presença que se reconstitui na
imaginação através dos indiciais reflexos aquáticos, resíduo de Narciso ou isto
não é uma paisagem?
Entre aparências e desaparições, marcas gestuais. Na imagem subtraída,
vemos mais. Ao agir estrategicamente sobre a imagem, Rosângela Dorazio gera um
campo perceptivo onde o jogo de presença e ausência requer por sua vez uma postura
ativa também por parte do espectador. O apagamento, neste caso, se opõe à
anestesia, já que conduz à aesthesis. É preciso apagar para estimular nossos
sentidos anestesiados pela profusão de imagens no mundo contemporâneo. Ao mesmo
tempo, ao talhar seu suporte, a imagem é desmistificada.
Embora o gesto dos Escalavrados seja rígido, a paisagem se torna fluida.
Mundo sólido que se desmancha aos nossos olhos, no ar e na água. As figuras da
série “Do Verbo Amar”, corpos sólidos que contém líquido fumegante – desejo que
transborda e entorna sobre si, mancha e desmancha. Fluxos e refluxos das
emoções. Rotinas alteradas.
Derramar suavemente pode deixar tantas marcas quanto os cortes
agressivos. E não há como escapar incólume.
Renata Wilner
Julho de 2012
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