Guarânia da baía
Vermelha
Marcio Harum
Como as cheias do Pantanal mato-grossense, a exposição Mar interior contou quase com um ano
para estar inteiramente formada. Nesta mostra, Alex Cerveny exibe por volta de
cinquenta trabalhos, entre pinturas e desenhos, realizados sob forte inspiração
acerca do que é a pujança visual da bacia do rio Paraguai, essa localidade
ilhada entre o Brasil e a Bolívia, região de infinitas áreas alagadiças, um mar
sem costa, maré cheia nem vazante, mas de margens que borram lenta e
constantemente o mapa do centro sul-americano. Na busca talvez de um oceano, o
Atlântico, vê-se como sobrevoadas de monomotor marcaram o artista durante o
período de intenso trabalho, no qual barqueou por sistemas hidroviários, deu
aulas de arte para crianças em um projeto socioeducativo e explorou a cavalo um
pouco da região da serra do Amolar, nas proximidades de Corumbá (MS).
São dois grupos de obras de dimensões variáveis que compõem a
mostra – os “hidrográficos”, que, na ponta do pincel da associação poética, apresentam
gestos rápidos, baseados em registros de memórias, pessoas, lugares e momentos
ali vividos no entorno pantaneiro, finas aquarelas negras sobre papel branco
levíssimo; e desenhos que reavivam fluxos de navegação do caminho fluvial
Paraguai-Paraná, esse corte hidrográfico ao longo de 3.500 quilômetros, símbolo
do programa de integração continental, que atravessa ao meio a América do Sul. Despontam
nessa série figuras de seres metamorfoseados em homem-peixe e duelos de animais
complementares – contraditórios, como os do homem versus jacaré –, firmando, assim, pela imaginação do artista, o
caráter da exposição. Com a intuição na mira de certos aspectos da cosmogonia
guarani, Cerveny evoca com Mar interior
a origem do mundo e os fenômenos do surgimento da condição humana em meio à
natureza selvagem.
O segundo agrupamento
é constituído de cinco desenhos maiores, nos quais aguadas de fundo azul
mancham o peso da gramatura do suporte em papel. Uma fina tinta preta de traços
suavemente delineados e o uso das folhas de prata caracterizam a série, como se
houvesse sido criada por delicados acordes ancestrais de uma harpa cosmológica,
ao extroverter em sua grandeza e fragilidade uma rara visão interior sobre a
gênese do Universo, na qual estrutura e evolução parecem ser respostas diretas às
tentativas de apreensão dos métodos para o estudo dos sonhos.
No conjunto de obras
em exibição ainda estão incluídas duas pinturas fortes de paisagem noturna,
feitas a óleo sobre a semitransparência do linho. A sós, em meio à natureza,
uma índia e um índio, representando em oposição as duas margens de um mesmo
rio, como figuras deslocadas e postas na contraordem do tempo cronológico, sugerem
repensarmos a impossibilidade real dos encontros, principalmente aqueles que têm
sido mediados por toda sorte de anteparos digitais, o que faz a vida desembocar
na falta de espontaneidade a que estamos absolutamente sujeitos nos dias de
hoje.
Mar interior suscita os antigos conhecimentos a respeito do significado da
“Terra sem mal”(Ivy marãey); nas
tradições tupi-guarani, indivíduos e grupos que abandonam suas aldeias e saem
em busca de uma superação ambivalente, rejeitando a ordem do convívio social,
sem precisar de fato da morte como passagem para tal feito, alcançam essa força
de transformação pela prática de exercícios migratórios e de caminhadas sem
rumo. Ao deixarem para trás a coletividade da aldeia e o peso de ser homem, sofrem
de uma transmutação de homens em deuses, conquistando sua entrada para habitar,
enfim, a “Terra sem mal”.
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